sábado, 1 de novembro de 2008

excertos de textos (aula 03):

poemas narrativos:  

4 / Salsugem – Al Berto 

às vezes… quando acordava

era porque tínhamos chegado

 

ficava a bordo encostado às amuradas

horas a fio

espiava a cidade as colinas inclinando-se

para a noite lodosa do rio

e o balouçar do barco enchia-me de melancolia

 

a noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados

cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia

o ruído dos becos a luz fosca dum bar

se descesse a terra encontrar-te-ia… tinha certeza

para o vôo frenético do sexo

e num suspiro talvez alagássemos os umbrais da noite

mas ficava preso ao navio… hipnotizado

com o coração em desordem

os dedos explorando nervosos as ranhuras da madeira

os pregos ferrugentos as cordas

 

as luzes do cais revelavam-me corpos fugidios

penumbras donde se escapavam ditos obscenos

gemidos agudos sibilantes risos que despertavam em mim

a vontade sempre urgente de partir 



27./ O homem ou é tonto ou é mulher – Gonçalo M. Tavares

É sempre de dia quando acordo 

E é sempre de noite quando adormeço.

Já experimentei fazer  surpresas.

Acordar de repente às 4 da madrugada.

Acordo e zás: tudo claro.

A mesma coisa quando adormeço de tarde. Fica logo noite.

Os meus amigos perguntam-me:

- Ontem dormiste a tua sesta?

- Dormi.

- Logo vimos – dizem eles – ontem escureceu em pleno dia.

 

É este um dos meus segredos.

A noite e o dia dependem de mim.

Quando acordo torno tudo claro.

Quando adormeço torno tudo escuro.

O meu corpo é um interruptor universal.


Mas esta é uma característica como outra qualquer.

Uns têm olhos azuis.

Outros têm o cabelo preto.

Eu desligo e ligo a luz do mundo.

Nada demais.


Se isso me traz algum problema?

Sim, é a resposta.

 

Vou dizer-vos um segredo. (aproxima-se)

Estou sendo observado.

Permanentemente.

24 horas por dia.

Um desassossego.

Coisa de malucos.


E logo eu que não faço mal a ninguém.

Alem disso (aproxima-se mais)

Alem disso querem obrigar-me a dormir a horas certas.

Isto, uns.

Porque outros querem ganhar dinheiro comigo.

Fazem apostas.

- Aposto que amanhã escurece às 4 da tarde.

Uma ninharia, ainda por cima.


Mas anda muito dinheiro em jogo.

E máfias. Há muitas máfias nesta história.

É que esta coisa do dia e da noite ainda tem alguma

importância, apesar de tudo.


poemas em prosa:

Pequenos poemas em prosa – Charles Baudelaire

XVII – UM HEMISFÉRIO NUMA CABELEIRA


Me deixe respirar, por longo, longo tempo, o cheiro dos seus cabelos, neles mergulhar todo o meu rosto, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com minha mão como a um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar.

Se você pudesse saber tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que ouço em seus cabelos! Minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens por sobre a música.

Seus cabelos contêm todo um sonho, repleto de velas e mastros; contêm grandes mares cujas monções me levam a encantadoras regiões, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelas frutas, pelas folhas, e pela pele humana.

No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso onde se estira o eterno calor.

Nas carícias de sua cabeleira, reencontro os langores das longas horas passadas num sofá, no quarto de um belo navio, embaladas pela arfagem imperceptível do porto, entre os vasos de flores e as moringas refrescantes.

Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo mesclado de ópio e açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do céu tropical; nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco.

Me deixo morder, por longo tempo, suas tranças pesadas e negras. Quando mordisco seus cabelos elásticos e rebeldes, me parece estar comendo lembranças.


prosa poética:

Os passos em volta – Herberto Helder

TEORIA DAS CORES

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.


História de cronópios e de famas – Júlio Cortázar

PREÂMBULO ÀS INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA NO RELÓGIO

Pense nisso: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você – eles não sabem, o terrível é que não sabem – dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que ele possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros, relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.


INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA NO RELÓGIO

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a correr as veias do relógio, grangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

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