terça-feira, 11 de novembro de 2008

Charles Baudelaire

A gramática, a mesma árida gramática, transforma-se em algo parecido a uma feitiçaria evocatória; as palavras ressuscitam revestidas de carne e osso, o substantivo, em sua majestade substancial, o adjectivo, roupa transparente que o veste e dá cor como um verniz, e o verbo, anjo do movimento que dá impulso á frase.Charles Baudelaire
poemas de Flores do Mal traduzidos para o português: A Uma Passante
tradução Guilherme de Almeida
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,Uma mulher passou, com sua mão vaidosaErguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.Eu bebia, como um basbaque extravagante,No tempestuoso céu do seu olhar distante,A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldadeDe um olhar que me fez nascer segunda vez,Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

O Vampiro
tradução Jamil Almansur Haddad

Tu que, como uma punhalada,Entraste em meu coração triste;Tu que, forte como manadaDe demônios, louca surgiste,
Para no espírito humilhadoEncontrar o leito e o ascendente;- Infame a que eu estou atadoTal como o forçado à corrente,
Como ao baralho o jogador,Como à garrafa o borrachão,Como os vermes a podridão,- Maldita sejas, como for!
Implorei ao punhal velozQue me concedesse a alforria,Disse após ao veneno atrozQue me amparasse a covardia.
Ah! pobre! o veneno e o punhalisseram-me de ar zombeteiro:"Ninguém te livrará afinalDe teu maldito cativeiro.
Ah! imbecil - de teu retiroSe te livrássemos um dia,Teu beijo ressuscitariaO cadáver de teu vampiro!"
O Albatroz
Tradução de Guilherme de Almeida

Às vezes, por prazer, os homens de equipagemPegam um albatoz, enorme ave marinha,Que segue, companheiro indolente de viagem,O navio que sobre os abismos caminha.
Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,Deixa doridamente as grandes e alvas asasComo remos cair e arrastar-se a seu lado.
Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!Ave tão bela, como está cômica e feia!Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo, Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!
O poeta é semelhante ao príncipe da alturaQue busca a tempestade e ri da flecha no ar;Exilado no chão, em meio à corja impura,A asa de gigante impedem-no de andar.

Uma carniça
Tradução de Ivan Junqueira.

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos Numa bela manhã radiante: Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, Uma carniça repugnante.
As pernas para cima, qual mulher lasciva, A transpirar miasmas e humores, Eis que as abria desleixada e repulsiva, O ventre prenhe de livores.
Ardia o sol naquela pútrida torpeza, Como a cozê-la em rubra pira E para ao cêntuplo volver à Natureza Tudo o que ali ela reunira.
E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça Como uma flor a se entreabrir. O fedor era tal que sobre a relva escassa Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, Dali saíam negros bandos De larvas, a escorrer como um líquido grosso Por entre esses trapos nefandos.
E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga, Ou esguichava a borbulhar, Como se o corpo, a estremecer de forma vaga, Vivesse a se multiplicar.
E esse mundo emitia uma bulha esquisita, Como vento ou água corrente, Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita E à joeira deita novamente.
As formas fluíam como um sonho além da vista, Um frouxo esboço em agonia, Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista Apenas de memória um dia.
Por trás das rochas irrequieta, uma cadela Em nós fixava o olho zangado, Aguardando o momento de reaver àquela Náusea carniça o seu bocado.
- Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida, Essa medonha corrupção, Estrela de meus olhos, sol de minha vida, Tu, meu anjo e minha paixão!
Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza, Após a benção derradeira, Quando, sob a erva e as florações da natureza, Tornares afinal à poeira.
Então, querida, dize à carne que se arruína, Ao verme que te beija o rosto, Que eu preservei a forma e a substância divina De meu amor já decomposto!

As Metamorfoses do Vampiro

Tradução de Ivan Junqueira.
E no entanto a mulher, com lábios de framboesa, Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa, E o seio a comprimir sob o aço do espartilho, Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho: - "A boca úmida eu tenho e trago em minha ciência De no fundo de um leito afogar a consciência. Sou como, a quem vê sem véus a imagem nua, As estrelas, o sol, o firmamento e a lua! Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios, Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios, Ou quando o seio oferto ao dente que mordisca, Ingênua ou libertina, apática ou arisca, Que sobre tais coxins macios e envolventes Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"
Quando após me sugar dos ossos a medula, Para ela me voltei já lânguido e sem gula À procura de um beijo, uma outra eu vi então Em cujo ventre o pus se unia à podridão!
Os dois olhos fechei em trêmula agonia, E ao reabri-los depois, à plena luz do dia, A meu lado, em lugar do manequim altivo, No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo, Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos, Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança, Que nas noites de inverno ao vento se balança.

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