quinta-feira, 13 de novembro de 2008

aula 04 (excertos)

O sentimento dum ocidental - Cesário Verde

A Guerra Junqueiro


I - AVE-MARIA

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista exposições, países:

Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


E evoco, então, as crônicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!


Vazam-se por arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!


II - NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som

Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!

O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,

Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!


E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.


A espaços, iluminam-se os andares,

E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos

Alastram em lençol os seus reflexos brancos;

E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.


Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.


Na parte que abateu no terremoto,

Muram-me as construções retas, iguais, crescidas,

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.


Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!


E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.


Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,

Derramam-se por toda a capital, que esfria.


Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Ao lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.


E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.


E eu, de luneta de uma lente só,

Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:

Entro na brasserie; às mesas de emigrados,

Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.


III - AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.


As burguesinhas do Catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.


Num cuteleiro, de avental, ao torno,

Um forjador maneja um malho, rubramente;

E de uma padaria exala-se, inda quente,

Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.


E eu que medito um livro que exacerbe,

Quisera que o real e a análise mo dessem;

Casas de confecções e modas resplandecem;

Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.


Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos reverberos,

E a vossa palidez romântica e lunar!


Que grande cobra, a lúbrica pessoa,

Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!

Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,

Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.


E aquela velha, de bandós! Por vezes,

A sua traîne imita um leque antigo, aberto,

Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,

Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.


Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.


Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes

Os candelabros,como estrelas, pouco a pouco;

Da solidão regouga um cauteleiro rouco;

Tomam-se mausoléus as armações fulgentes.


Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim?


IV - HORAS MORTAS

O teto fundo de oxigênio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-se a quimera azul de transmigrar.


Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.


E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.


Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!


Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,

Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,

Numas habitações translúcidas e frágeis.


Ah! Como a raça ruiva do porvir,

E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,

Nós vamos explorar todos os continentes

E pelas vastidões aquáticas seguir!


Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.


E nestes nebulosos corredores

Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.


Eu não receio, todavia, os roubos;

Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

Amareladamente, os cães parecem lobos.


E os guardas, que revistam as escadas,

Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,

Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.


E, enorme, nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor humana busca os amplos horizontes,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


À une passante - Charles Baudelaire

La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,

Une femme passa, d’une main fastueuse

Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;


Agile et noble, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.


Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté

Dont le regard m’a fait soudainement renaitre,

Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?


Ailleurs; bien loin d’ici! Trop tard!Jamais peut-être!

Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,

O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!


A uma passante - trad. Paulo Menezes

A rua em derredor era um ruído incomum, 
longa, magra, de luto e na dor majestosa, 
Uma mulher passou e com a mão faustosa 
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. 
Eu bebia perdido em minha crispação 
No seu olhar, céu que germina o furacão, 
A doçura que embala o frenesi que mata.

Um relâmpago e após a noite! — Aérea beldade, 
E cujo olhar me fez renascer de repente, 
So te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! 
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais, 
Tu que eu teria amado — e o sabias demais


A uma passante - trad. Marco Antonio Frangiotti

A rua ensurdecedora ao redor de mim agoniza.

Longa, delgada, em grande luto, dor majestosa,

Uma mulher passa, de uma mão faustosa,

Soerguendo-se, balançando o festão e a bainha;


Ágil e nobre, com sua perna de estátua.

Eu, embevecido, inquieto como um extravagante,

Em seus olhos, o céu lívido onde se oculta o furacão,

A doçura que fascina e o prazer que destrói.


Um clarão... depois a noite! - Beleza fugidia

Cujo olhar me faz subitamente renascer,

Não te verei senão na eternidade?


Alhures; bem longe daqui! Muito tarde! Jamais talvez!

Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou,

Ah se eu a amasse, ah se eu a conhecesse!


A UMA PASSANTE PÓS-BAUDELAIRIANA - Carlito Azevedo

2ª versão (1995)


1.

sobre

esta pele branca

um calígrafo oriental

teria gravado sua escrita

luminosa

— sem esquecer entanto

a boca: um

ícone em rubro

tornando mais fogo

suor e susto,

tornando mais ácida e

insana a sede

(sede de dilúvio)


2.


talvez um

poeta afogado num

danúbio imaginário dissesse

que seus olhos são duas

machadinhas de jade escavando o

constelário noturno:

a partir do que comporia

duzentas odes cromáticas

— mas eu que venero (mais que o ouro-verde

raríssimo) o marfim em

alta-alvura de teu andar em

desmesura sobre uma passarela de

relâmpagos súbitos, sei que

tua pele pálida de papel

pede palavras

de luz


3.

algum

mozárabe ou andaluz

decerto te dedicaria um

concerto

para guitarras mouriscas

e cimitarras suicidas

(mas eu te dedico quando passas


no istmo de mim a isto


este tiroteio de silêncios

esta salva de arrepios)

Nenhum comentário: